DIÁLOGOS DE UM AMOR NUBLADO [☠ ; Ⴜ ; ⁂]

-Amar-te não está em causa.
-Da minha parte também não. Só não me obrigues a escolher.
-Não te estou a obrigar a nada. Incomoda-me o cheiro disso, o sabor disso, e tudo o que está relacionado com isso.
-Não me estás a obrigar mas estás a condicionar-me. É quase a mesma coisa. Odeio sentir-me pressionada. Faço as coisas porque quero e não porque querem que eu faça. Neste caso, já tentei e não consigo!
-Eu pedi-te primeiro. Nada fizeste. Se me continua a incomodar, queres que fique calado?
-Acho que é tão difícil para ti ficar calado como para mim deixar de fumar.
-Eu posso ficar calado, se não tiver a mínima noção que fumas.
-Não tenho culpa que sejas sensível ao tabaco.
-Nem eu. Não gosto. O meu dilema é amar-te. Eu faria de tudo para poder ficar contigo.
-Tu fazes ideia de quantas pessoas antes de ti já me pediram para eu deixar de fumar?
-Não. Mas acho que eles também não tinham a importância que eu tenho para ti.
-Porque dizes isso?
-Não me dizes que me amas só da boca para fora pois não?
-Não, claro que não!
-E a essas pessoas dizias "amo-te" só porque sim?
-Não. Nunca o fiz. Digo o que penso e o que sinto apenas.

-Logo, sou mais importante que as pessoas anteriores. Porque não dizes que me amas só porque sim, tal como à maior parte dessas pessoas nem sequer lhes disseste coisa alguma.
-Exacto. Virava as costas e punha-me a andar...
-Se eu te perguntar porque fumas, vais responder-me o mesmo de toda a gente, certo?
-O quê?
-Porque fumas?
-Olha...sei lá...porque sim.
-Pensei que tínhamos combinado que "porque sim", "porque não" e "não sei" não existiam entre nós.
-Fumo porque...porque...porque sou estúpida, pronto.
-Para mim, fumar não passa disso mesmo, duma estupidez.
-Para mim tem muito mais valor que isso.
-Ai sim? Explica-me então que valor é que uma coisa que te mata pode ter?
-"Mata" é relativo. Com um pouco de sorte ou de azar, tens os pulmões piores que os meus.
-Nem vou discutir isso contigo.
-Motivos: é meu confidente, amigo, companheiro e super-silencioso.
-Quê?
-Se não fumas, se nunca fumaste, não estou à espera que compreendas.
-Acabaste de atribuir pelo menos três qualidades de pessoas amigas a um assassino...silencioso.
-Eu sei que faz mal. Mas tal como muita coisa, faz mal mas sabe bem. Sinto necessidade dele. Acalma-me os nervos. Relaxa-me.
-Sim. Durante vinte ou trinta minutos.
-Há pessoas que só conseguem stressar-me durante esse espaço de tempo.
-Tal como há pessoas que o conseguem fazer durante 3, 4, 5, 6 horas...
-Isso não chega.
-Ninguém é perfeito.
-O cigarro também não. Eu é que aceito as qualidades e defeitos dele, tal como faço com as pessoas.
-Mais cedo ou mais tarde vais ter complicações por causa dessa merda. Pensas que sugas o fumo apenas, quando na realidade é ele que te suga a vida. E dá cabo de nós.
-É da minha responsabilidade.
-Não sejas parva. E eu, que te amo? Fico a ver-te sofrer e morrer porque continuaste a ser estúpida?
-Não sejas tão dramático. Já passei de um maço para quatro ou cinco cigarros por dia.
-E então?
-Para ti pode não ser nada, mas para mim é uma grande vitória.
-Agradeço o esforço. Mas para ti, deveria ser ainda uma derrota camuflada. Algo que parece que venceste, mas na realidade, continua lá, silencioso, a dar cabo de ti.
-Quando quiser deixar, eu deixo. Não preciso de ti sempre a foder-me a cabeça por causa do mesmo.
-Como vês, é tudo uma questão de quereres.
-MAS É QUANDO EU QUISER, NÃO QUANDO TU QUISERES!
-Nem por mim...vencido por um cigarro...bonito.
-Não podes ter-nos aos dois na tua vida?
-Não posso ter-te só a ti? Nunca fui adepto de relações a três...
-Deixa de ser parvo. Isto não é uma pessoa!
-Bem que parecia uma, da forma como o descreveste.
-Já chega não?
-Tenho de começar a fumar para não te perder?
-Isso era a maior estupidez que fazias na vida.
-Porquê? Não vales isso?
-Sei bem qual é o meu valor. Não devia ser medida por aquilo que fumo ou se fumo, mas sim pelo meu interior.
-O teu interior está todo contaminado de tabaco. E não te defino por isso. Simplesmente custa-me a acreditar que a mulher que o meu coração escolheu para toda a vida, não consegue vencer este desafio.
-Se não fumaste até quase aos trinta anos, começares agora, muito provavelmente ia era fazer-me afastar de ti.
-Depois do esforço que eu ia fazer, deixavas-me?
-Tal como para ti, passar de um maço para quatro não era esforço, passares a fumar, era um sinal de fraqueza. Se eu não sou forte o suficiente para deixar, que força é a tua se passares a fumar?
-Simples. Amo-te. Quero estar o máximo de tempo contigo, mesmo que tenha de fazer sacrifícios que vão contra o meu bem-estar. E só de pensar que amanhã posso acordar e não estás mais a meu lado deixa-me completamente na merda. Sabes o que isso é?
-Não justifica deixares de ser quem és por causa de outra pessoa.
-Deixas de ser quem és só porque fumas?
-Claro que não.
-Logo, eu só ia acrescentar algo aquilo que sou também.
-Ouve...eu fumo desde os 13 anos...isto não é dum dia para o outro.
-Ouve-me tu: tenho dois colegas que fumavam. Um fumava três maços por dia. Outro, fumava quatro. O primeiro foi fazer análises, e diagnosticaram-lhe algo nos pulmões. Ele nem quis saber de mais nada. Nesse dia parou. O outro, mais activo, supostamente saudável, um dia teve uma pequena dor no peito. Incómoda. E repetitiva. Foi ao médico. E era simples: estava estupidamente entupido. Estar vivo ainda era um milagre. Nesse preciso dia, deixou de fumar.
-Eu sou eu, eles são eles. Cada caso é um caso.
-Eu sei. E eu não acredito que tu sejas menos que eles.
-Não sou mais nem menos que ninguém.
-Para mim és mais que qualquer outra pessoa. Senão eu andaria com qualquer outra pessoa em vez de andar contigo.
-...
-Queres que deixe de falar no assunto? Deixa o tabaco.
-Não chegou a altura ainda.
-Quem a decide? Tu?
-Talvez. Quando chegar o momento certo, eu deixo.
-Dizes tu...
-Se eu digo, faço.
-Como disseste a semana passada? Ias deixar, não ias comprar mais tabaco e quando eu chego a casa para te dar um beijo, cheira-me a...
-...
-Pois é. E quando eu quiser ter filhos. Como é?
-Isso depois é diferente.
-Se é diferente depois, porque é que não o pode ser agora?
-Porque agora não é depois.
-Amor, fazemos o seguinte...não me venhas mais beijar, abraçar ou acariciar depois de fumares...
-Eu lavo os dentes, não fico a cheirar a nada!
-Dizes tu, que estás habituada a fumar! Sou sensível a essa merda. Qual foi a parte de pulmões sensíveis que ainda não percebeste?
-Nunca vi ninguém com isso...
-Parabéns. Estou aqui!
-O nosso amor é como o Sol. O tabaco é como nuvens. Quanto mais fumas, menos o Sol se vê.
-Isso noutro contexto qualquer, até ficava bonito.
-Também és linda quando não cheiras ou sabes a cinzeiro!
-Só por causa desta conversa irritante, está a apetecer-me ir fumar de novo! PÁRA DE ME IRRITAR!
-Controla-te sim?
-Como, se não páras de bater na mesma tecla? Ainda este fim de semana me chateaste com o mesmo. Hoje é segunda feira e já tás no mesmo?
-Já estou calado...
Ela levanta-se, pega no casaco e na mala e prepara-se para sair.
-Onde vais?
-Vou dar uma volta para espairecer. E assim não tenho de fumar à tua frente.
-Não precisas de ir, já me calei...
-Preciso sim! - diz ela já com a porta aberta.
-Olha...
Ela olha para ele...
-Amo-te...
A porta bate. A discussão após o jantar fora intensa. Deitado na cama, o pensamento do rapaz apenas está focado na solidão e na sua amada. Quatro horas depois, decide ir atrás dela. Sem qualquer indicação ou resposta no telemóvel, segue em direcção a um bar que ela adorava. Entra. A intuição funcionara mais uma vez. Lá está ela, sentada à mesa com mais um casal e uma amiga em comum de ambos.
-Boa noite.- diz ele.
-Boa noite, respondem todos os outros, quase ao mesmo tempo.
-Que estás aqui a fazer? - respondeu ela à parte, agressiva.
-Vim ver-te amor. Tens o telemóvel desligado e eu estava com saudades tuas.
Sugando o vapor de mais um cigarro para o seu interior, a conversa prossegue noite dentro. À excepção do recém chegado, todos fumavam. Trocavam olhares, até que decidem ir para casa. Quase nada se disse até lá. Quando se foram deitar ela diz:
-Boa noite amor...
-Amo-te...- é a resposta.
Adormecem com os corpos juntos um ao outro.
 No dia a seguir, ele vai trabalhar, apesar das apenas duas horas de sono dormidas. Quando regressa do trabalho, ela não está em casa. Quase como resposta automática, pousa o casaco e dirige-se para o bar da noite anterior. E lá está ela novamente. Não lhe ficou indiferente o esforço e presença. Ficou a pensar no porquê dele estar a fazer aquilo durante uns segundos, mas a baforada que deu a seguir, limpou-lhe esse pensamento da cabeça.
O sistema repete-se durante mais dois dias. E o telemóvel mantinha-se desligado. Nesta quinta algo foi diferente. Ele começou a tossir imenso e saiu dali. Mal se despediu do pessoal.
 Foi para casa. Ela ficou até mais tarde. Final da semana, último dia de trabalho. Ele saiu para ir trabalhar, ela, de férias, ainda nem tinha chegado a casa. Possivelmente ainda estaria no bar. E a tosse, estava mais forte, mais irritante que nunca. Seu chefe manda-o ir descansar.
 A caminho de casa tem tonturas. Considera-se mais arrastar do que propriamente andar, a forma de deslocação usada por ele, da estação de comboio até onde morava. E ela não estava novamente. Rotineiramente, pousa o casaco e vira-se para sair novamente, mas algo não corre bem.
 No bar, a sua mulher repara mais cedo que o habitual que ele não havia chegado. Resolve sair dali e ver o que se passava. Perto da porta do prédio onde moravam, está uma ambulância. Estranhando a situação, ela apressa o passo. Dois bombeiros passam com o seu namorado numa maca. O cigarro que ela estava quase a terminar parecia uma estalactite na sua mão agora...porém, queimava...continuava a queimar...até chegar ao filtro...e começar a queima-lo também.
 Ela corre na direcção do veículo histérica.
-É o meu namorado que está aí, o que se passa?
-Pode identificar-se por favor?
-Sou a namorada desse rapaz que levam. Que se passou?
-Ainda não sabemos. Foi encontrado à porta de casa desmaiado no chão quando aparentemente se preparava para sair, segundo um vizinho. Foi o mesmo que accionou o alerta.
-Desmaiado? Mas...
-Ele tinha sangue nas mão. Parece que espirrou ou tossiu sangue. Há algo que saiba que nos possa ajudar?
 O frio daquela estalactite que rebolava algures por ali no chão chegava-lhe agora ao sangue. E paralisa-a. O esforço do rapaz tinha sido bem superior ao que devia. Ela explica o que sabe e pede para entrar na ambulância a fim de acompanhar o seu ente querido.
 Lá atrás, agarra-lhe na mão e fala com ele:
-Amor, estás bem?
-...
-Fala comigo amor...porque fizeste isto?
Ele mal consegue falar. Apenas as lágrimas rolam pelos cantos dos olhos, na direcção dos ouvidos. A máscara que o ajuda a respirar, não ajuda porém a que ele se oiça. Com dificuldade, e com a outra mão, ele puxa-a um pouco para baixo. Ela repete:
-Amor, que se passou contigo? Porque fizeste isto?
-Por...que...
-Porque?
-A...mo...te...


BY:JCS
12/05/2012
22:59

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