A CASA [☠ , ⁂]


Podia ser uma casa qualquer. Mas não o era, e tu sabias disso. Os habitantes locais sabiam da história há décadas, mas ninguém tinha coragem para deita-la abaixo, com medo de represálias a nível espiritual para todo o sempre. Tu, sempre estiveste disposto a ajudar os outros no que fosse preciso, mas este caso para além de ser uma ajuda para os seguintes, consideravas uma brincadeira para ti mesmo. Estavas farto de ouvir falar em casas assombradas, de ver filmes sobre o género e continuavas super-céptico.
 Levaste as tuas duas malas, com as tuas coisas e comida, e por mais que tivesses ouvido dizer que a casa era assombrada, quando olhavas para ela do lado de fora, na tua opinião, não passava de um andar num prédio qualquer abandonado. A única coisa que te chamava a atenção, eram as palavras escritas com aquilo que parecia ser sangue. Havia rumores de que era das vítimas que haviam sido feitas ao longo dos tempos e que eram pistas para se conseguir ultrapassar a estadia. Uma palavra equivalia a uma vítima. Olhaste para aquilo e pensaste que qualquer pessoa o podia ter escrito. Que histórias há muitas. Que isto e que aquilo. A tua força, como tu dizias, era inabalável, e isto não era sequer um desafio nem nenhuma prova de fogo.
 Passaste o muro das palavras, que diziam, traduzido do latim antigo e adaptado à linguagem de hoje, "todos os actos têm consequências", "ignorância é felicidade", "só os mais fortes sobrevivem", "saudade dói" e por fim, "amar...". Sim, havia um espaço em branco. Faltava ali uma palavra qualquer. Enquanto te dirigias para a entrada do prédio, estavas mentalmente a calcular quantas pessoas já tinham supostamente morrido. Dizia os sábios daquele remoto lugar, que só seria possível sair vivo daquele lugar, após passar sete dias sem comunicar de forma alguma com os espíritos que lá habitavam. Ao lembrares-te disto, associaste de imediato à primeira coisa que leste do muro. Sim, fazia sentido. Não tinha necessariamente de se referir a ignorância relativa a falta de conhecimento, mas sim de "não ligar nenhuma". Fácil não?
 Já estavas no elevador, a beijar a fotografia da tua filha que deixaste lá fora. Alguém ou algo sabia duma realidade inegável: saudade dói. Mas ias ser capaz de superar tudo isso. A tua força dizia-te isso. Chegas ao último andar e guardas apressadamente a foto no bolso de trás, junto à carteira de onde a tinhas tirado.
 Saíste do elevador. Na porta, mais uma inscrição, o que te apelava ao desafio: "Consegue ver isto outra vez?". Olhaste para o número da porta. Chamou-te a atenção por ser um mostrador digital de algarismos brilhantes. Porque era digital? Bem, adiante. Tinhas uma semana para pensar nisso.
 Passas pela porta, apelidada "O Portão do Inferno". Achavas que era um nome exagerado, para uma simples porta de madeira. O teu olhar apreciador, refinado e de bom gosto visita a casa. Belo apartamento que era. Estranhamente acolhedor, mais pequeno em largura e comprimento que as habituais casas assombradas que ouviste falar. Ainda assim, achavas desproporcional a distância do chão ao tecto em relação à outras medidas. Era exageradamente alto. Bem, continuando a tua análise, tinha todas as mordomias necessárias, estava pintada de branco, tinha mobílias do século XIV em excelente estado de conservação. Ficaste abismado com o tratamento que lhe tinham dado, pois na tua profissão, e sendo tu um profissional de alto nível na área do restauro, nunca tinhas visto nem feito nada semelhante.E na cozinha, todos os electrodomésticos, grandes e pequenos. Nem na tua tinhas tantos. Era incrível!
 Quarto após quarto, divisão após divisão, escolheste o teu cantinho. A noite ia chegar em breve.
 Já com as malas desfeitas, encontraste na sala a ler um pequeno livro de anedotas. Toda a gente sabe que os espíritos se alimentam de energias negativas, tais como medo, dor, ódio, raiva, tristeza, falta de fé. Portanto, apesar de não acreditares muito nestas coisas, seguiste conselho do teu melhor amigo. De qualquer das formas, as regras da casa não permitiam o que quer que desse música. Tinhas uma televisão, um plasma enorme de 55" polegadas que ligaste pouco depois de acabares o livro. Que imagem fantástica que o aparelho gerava. Até agora só tinhas reparado num defeito: a casa era fria, mesmo com aquecedores ligados e janelas fechadas.
 Inevitavelmente, acabas por adormecer numa daquelas camas "king size" que sempre tanto desejaste. E um novo dia começa.
 Hoje, com mais claridade e mais descansado, podes observar que as colunas da casa e o tecto, são em relevo. Notas que são árvores esculpidas. Mmmmm...assim faz um pouco mais de sentido a altura que denotaste ontem.
 Vais para a cozinha. Fazes a tua primeira refeição. Tudo óptimo e funcional. Pensas, onde, como quando e porquê é que a casa está assombrada. Parece uma piada. Enfim. Vais para a sala novamente. Procuras pela tua carteira. Dás a volta à mala. Ao casaco. Ao sofá. Desapareceu? Acabas por procurar no sítio mais óbvio: O bolso de trás das calças. Se não a tiraste, porque andaste à procura dela noutros sítios? Assim que a tens na mão, puxas a fotografia da tua filha para fora. Ou ias puxar. Pois não a encontras. Escurece um pouco. Uma nuvem talvez. Lembraste que não te podes passar, por mais que não acredites nas coisas que se falassem acerca da casa. Mais dois dias passam. Tirando a fotografia que teimava em não aparecer, estava tudo normalíssimo. As noites eram calmas. Calma demais até. Não se ouviam pássaros, pessoas. Nada. Não se ouviam portas a ranger, não se viam luzes a acender ou espíritos a passar. Ao principio tiveste um pouco de receito de usar os produtos da casa. Depois, isso passou-te. Bebeste vinho, tomaste banho, usaste as máquinas de exercício. Ricas férias. Chega a noite. Estás sentado na tua super-cama. Pegas na carteira mais uma vez. Podias ter procurado mal nas outras trinta vezes. Pões a hipótese de a teres perdido no elevador. Como já tinhas dado a volta a casa toda numa busca tipo caça ao tesouro e nada encontraste...sim, o elevador fazia cada vez mais sentido. Era a única coisa de que te lembravas. E a única que te fazia consolava...quer dizer, mais ou menos...
 Querias ver a tua pequenina novamente...mandas com a carteira contra a parede. Cruzas as pernas, inclinaste um pouco para a frente e pões as mãos atrás da nuca. Pensas nela. Já atingiste metade dos dias necessários para poderes sair. Ontem tentaste abrir a porta para ires ao elevador, mas não foi possível. Do lado de dentro, tinhas um mostrador igual ao do outro lado da porta, só que este tinha uma contagem decrescente a decorrer. Chegas rapidamente à conclusão que era o total de horas que faltavam para poderes sair. Tudo isto atravessa a tua mente numa questão de segundos. Balanças o corpo para a frente e para trás. Estás notavelmente com raiva, tristeza e saudades. Apercebendo-se da tua situação, a tua filha pergunta-te:
-Papá...porque estás triste?
-Ó filha, porque tenho muitas saudades tu...
Ups... Quebraste a regra da casa. Não era a tua filha. As portas e janelas fecham-se violentamente. BUUUMM! Tudo ao mesmo tempo. O que quer que aquilo fosse, virou a cara para ti. Deu a volta ao corpo, mantendo-o estático. Ouves os ossos a estalarem, partirem. Vês que não tem olhos, apenas o lugar vazio deles com sangue a escorrer pelas faces saído de lá. Os dentes não eram de humano sequer. Ela sorri, revelando um monumental sorriso de tubarão, como num dos desenhos animados que viste um dia com ela. Ficas apavorado! É horrível. E tu estás ali no mesmo quarto, fechado. Gritas. Mas ela grita mais alto e de forma mais estridente que tu. Á medida que perdes o controle de ti mesmo e entras em pânico ela vai passando de uma menina de 8 anos para uma mulher horrível, com mais de dois metros de altura. As suas unhas gigantes que mais pareciam pequenas espadas atiram-se a ti. Cravam-se na zona das costelas. O teu pânico já passou para o estado a seguir, cujo nome desconheces. Uma língua enorme sai da boca da criatura. É negra, longa, viscosa. Escorre dali um liquido mais nojento ainda! Mas espera. Divide-se em duas! Estas a ver aquilo tudo a movimentar-se a centímetros de ti e...ela recolhe. Explode de dentro da boca dela contra os teus olhos. E gera mais dor! Ela lança-te para o tecto, onde os troncos ficaram reais. Através dos seus ramos e lianas, ficas lá preso, suspenso horizontalmente pelos braços e pernas. Indefeso e bem esticado, ela arranca-te as roupas, seguindo-se da tua pele. Aquelas garras afiadas rasgam a tua carne. A tua dor é tanta que o teu cérebro emite ordens instintivas para gritares, mas já não sai voz. A tua perna esquerda sai projectada por uma das janelas. Diga-se sinceramente que foi a parte que ficou em melhor estado. Segundos depois após ter começado a esgravatar no teu corpo, atinge os ossos. Sem qualquer dificuldade. A velocidade, força e maldade é tanta que os quebra...corta-os como se fossem simples folhas de papel.
Um número é somado ao contador digital que estava na porta assim que o teu corpo, ou o que resta dele, cai inerte no chão. Uma fotografia pega fogo dentro do elevador. Enquanto os teus pedaços jazem mortos e vão arrefecendo, a frase incompleta no muro, fica inexplicavelmente completa: "Amar...mata!".

BY:JCS
15-03-2012
09:36

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