DIÁLOGOS DE UM PASSADO INACABADO [Ⴜ , ⁂ ]

- Se o que tu queres é pedir-me em casamento, esquece! Já sou casado e muito bem. Casar foi a melhor coisa que fiz.
As palavras entravam-te como facas pelo coração dentro. Ainda ontem te tinha falado. Ficou surpreso, mas falou-te tão bem...Continuou friamente o seu discurso.
- Estou feliz, estou bem, não estou como tu.
Cada palavra que ele dizia magoava-te cada vez mais. Passaram-se mais de vinte anos desde que sentiste aqueles lábios pela última vez. E ainda não te tinhas esquecido do seu sabor ou do seu calor. Ainda com o pensamento nessa memória, respondes com sinceridade às palavras ouvidas:
- Não duvido que gostes da mulher com quem estás. Talvez até sejas realmente feliz. Mas se te perguntar se a amas, não me vais saber responder. E vais ter de mentir a ti próprio antes de me mentir a mim.
- Tivemos uma bonita história de amor há muitos anos atrás. Tudo isso é passado agora. Cada um seguiu para seu lado.
- Verdade. Dizes tu que não me queres e que não me podes ver? Esses olhos pelos quais me apaixonei há tantos anos atrás, continuam lindos. Diz-me porque ainda se enchem de brilho quando olhas para mim.
- Deves estar a imaginar coisas. Brilham porque estou de frente para o sol.
- Sempre foste óptimo a desconversar quando o assunto não te agradava. Daqui a pouco deve chover. Depois quero ver que desculpa me vais arranjar.
- Estou a dizer alguma mentira?
- Vivi estes anos todos a amar-te em silêncio. Não me parece correcto desistir de ti agora. Estaria a ser falsa contigo e comigo mesma.
- Tiveste a tua oportunidade.
- Tal como tu.
- Eu aproveitei enquanto pude.
- A chegar a casa bêbado? A gritar e a dar-me porrada? A mim e aos nossos filhos?
 O brilho dos olhos dele desapareceram. O passado há muito guardado, fora novamente chamado para ajustes no presente. A raiva, talvez ódio, era o novo residente do seu olhar. Suas acompanhantes de luxo, as palavras, prontamente se fizeram ouvir.
- E quando tu andavas com outros, quando eu estava fora?
- Mesmo que isso fosse verdade, não te dava o direito de me tratares abaixo de cão.
- As pessoas não são cegas, nem parvas como tu julgas. Viam-te e espalhavam a tua pouca vergonha pelo bairro.
- Nunca conseguiste provar que te trai. Nem a tua irmã. Nem a tua mãe. Pelo que espalhavam por aí, levei de vocês três. O meu amor por ti é forte e imortal, mas o meu corpo não.
- Só tiveste o que merecias.
- E os teus filhos, apanhavam porrada porquê? Também te traiam? Ou era apenas por não se conseguirem defender, que lhes batias?
- Estás muito preocupada com eles agora. Quando os abandonaste à porta de minha casa não pensaste nisso pois não?
- Eu nunca os abandonei! A tua irmã é que não mos deixou levar.
- Levar? Levar?? Tu nem de ti sabes cuidar, quanto mais de dois bebés!
- Fiz o meu melhor como mãe. Fiz o meu melhor como mulher. Que mais querias de mim que eu não tivesse feito por ti?
- Quiseste estar com eles durante os fins de semana. Por seres mãe deles, acedi a esse pedido. E quando chego a casa, está a criança sentada à porta? QUERES FALAR-ME DE RESPONSABILIDADES?
- Quando fugiste de casa para estares comigo, foste responsável? Deixaste toda a gente à tua procura, e nem te dignaste a dizer aos teus pais onde ias ou se voltavas!
- A CRIANÇA TINHA TRÊS ANOS CARALHO! ABANDONASTE-A!
Os ânimos estão à flor da pele. Ele cerra os punhos. A imagem não te é estranha. Vives o presente e revives o passado ao mesmo tempo. As lágrimas apressam-se por chegar aos teus olhos, e tu, apressas-te por não lhas mostrar. Sim, doí, mas não é momento nem o local ideal para o fazeres. Entretanto a chuva começa a cair. Caso não aguentes, podes sempre dizer que não são lágrimas.
- Vais bater-me outra vez?
- Se calhar é o que merecias...
- Não bastou teres ido atrás de mim com um machado para me matares?
- Vontade não faltou nesse dia. Se acontecesse alguma coisa ao meu filho...
- Como aconteceu tantas vez com a madrasta que lhe arranjaste e nada fizeste?
- Ela não lhe fez nada.
- Nada que tu soubesses. A ele e à tua filha. Ou pensas que não me contaram?.
- Agora já acreditas no que as pessoas te dizem?
- Não. Mas acredito no que o meu filho me diz.
- Como...
- Lá por ele ter fugido de casa ou por nunca mais ter podido estar comigo, procurou-me...e encontrou-me. Falou-me. Deu-me uma nova oportunidade.
-...
- Pois. Hoje, estou aqui perante ti, não só por mim, por ti, ou por nós, mas também por ele. Numa das nossas conversas, ele revelou-me que era o seu maior sonho ver-nos juntos. Pelo menos uma vez. Já que não tem memórias de alguma vez isso ter acontecido.
- Ele disse-te isso?
- Claro. Que necessidade tinha eu de estar a inventar? Provavelmente achas estranho, porque tu e ele, devem ter tido uma ou duas conversas sérias na vida. Quem é que achas que foi mais ausente? Tu, que estavas lá sem estares, ou eu, que sem estar tentei estar?
- Nenhum dos dois. Ambos falhámos.
- Por isso ele fugiu de casa assim que pode. A mulher que arranjaste, a que ele se habituou a chamar de mãe no meu lugar sob ameaça de porrada, nunca foi concorrente aquilo que eu poderia ter sido. Trocaste-o por uma mulher que não te faz feliz...nem a ele. A nossa filha, felizmente, deixaste-a ao cuidado da minha mãe, senão...
- Senão o quê?
- Já nem estava viva provavelmente...
- Vocês falam da mulher como se ela fosse algum monstro. Foi a mulher que eu escolhi. Ela tem o seu feitio, mas não é nenhum monstro.
- Monstro e cego és tu, por não veres que ela é que te escolheu a ti por conveniência. Nunca te amou e faz de ti tudo o que quer. Afastou-te de todos os que realmente se preocupavam contigo. Hoje estás sozinho. Por isso, sentes e pensas que ela é tudo para ti.
-...
- Quando vais abrir os olhos? Quando os fechares?
- Estou com ela à tempo suficiente...
-...para perceberes que não há nem nunca houve amor na vossa relação. Amo-te mais eu apenas a olhar-te nos olhos, que ela quando está na cama contigo.
- Não fales do que não sabes.
- Só sei falar do que sei. Ou esqueceste-te que também estivemos mais de cinco anos juntos? Sei reconhecer no meu homem quando ele está feliz, mesmo quando as palavras dele dizem o contrário.
- Não sou o teu homem. Porque não vais ter com o marido? Ele sabe que estás aqui?
- Podia ter tido todos os homens do mundo. Ido para a cama com todos eles. O meu corpo, as minhas palavras foram de outros que vieram a seguir a ti, mas o meu coração, foi sempre teu.
- E queres que eu largue vinte anos de casamento para ir a correr para os teus braços? Decididamente, não estás boa da cabeça...
- Sim...sou louca por ti. Mesmo tu sendo o brutamontes estúpido que és. Mesmo quando me mentes. Mesmo que tenhas outra mulher na tua vida.
- Não respondeste à minha pergunta.
- Não se trata daquilo que eu quero. Porque é que têm de ser os outros a decidir a tua vida? A única coisa que sabes decidir é quando partir para a violência?
- Sou casado. Já te disse. É melhor esta conversa ficar por aqui.
- Disseste que se não casasses comigo, não casarias com mais mulher nenhuma...
- Onde ouviste isso?
- Na nossa cama...na nossa casa...da tua boca...
- Só te lembras do que não interessa.
- Só me lembro do que preferes não te lembrar.
- Não, não quero lembrar-me disso.
- Porquê? Faz-te lembrar do que nunca mais voltaste a ter com mulher alguma a não ser comigo?
-...
- Ou por teres à tua frente a mulher que te podia dar isso tudo de volta?
- Não sou feliz tão feliz quanto já fui, é verdade. Mas foi a escolha que fiz e decidi levar em frente.
- Isso não foi uma escolha. Foi um castigo. Castigaste-me...a mim, a ti e aos teus filhos...
- Os meus filhos estão bem.
- Sim...sobreviveram ao inferno que lhes criaste.
- Contigo tinha sido melhor, queres ver?
- Connosco teria sido.
- Mas não foi. É a vida.
- A vida é feita de escolhas. Todas têm uma consequência.
- Se a minha é ser infeliz, é uma consequência da minha escolha.
- Quando vais deixar de ser burro, para passares a viver?
- Quem tu pensas que és, para me estares a chamar nomes sempre que falas?
- Possivelmente, a única pessoa neste mundo que te ama e se preocupa contigo. Chega-te?
-...eu...tenho de ir...
- Para o conforto dos braços da tua amada?
- Deixa-te dessas merdas!
- Talvez um dia.
- Que ganhas com isso?
- Que achas que tenho a perder mais?
- Deixa-me me paz. Com a minha felicidade e escolhas...
- Ou falta delas, neste momento.
- Seja.
- Não tenciono deixar-te ir...
- Porquê?
- Tenho saudades tuas estúpido!
- Pois. Mas já vens tarde.
- Mas vim. Ao contrário de ti. Hoje, estou aqui à tua frente. Hoje, podes perguntar-me como estou, em vez de mandares perguntar por mim a não sei quem.
- Eu não...
- Se vais mentir, continua calado!
-...
Sorris. A chuva que cai já não te incomoda. Nem o frio. Nem mesmo a possibilidade de alguém vos ver ou da mulher dele aparecer. Ao saber que tu sabes dessa informação, não te vai contrariar ou desmentir. Contente com este facto, resolves dar-lhe um pouco mais de tempo e de espaço. Afinal, se esperaste tanto, e se ele demorou anos a construir e manter a relação actual, não podes esperar vir e mudar tudo do dia para a noite...por mais vontade que tenhas que isso aconteça. Este momento, consideras a tua segunda vitória, tendo sido a primeira conseguires falar com ele.
- Vai lá...quando quiseres falar de novo, sabes onde me encontrar.
- Não devias estar a fazer isto.
- Porquê?
- Isto é de loucos.
- Ainda bem. Tal como nos velhos tempos. Só quando deixamos as outras pessoas interferirem na nossa relação, é que as coisas correram mal. Enquanto fomos loucos, fomos felizes.
- Eu...eu tenho de ir...
- Fica bem homem.
- Tu também...
- Só mais uma coisa...
- Diz...
- Amas-me?
Os olhos dele iluminam-se com a resposta. Um pequeno sorriso escapa-se-lhe. Sem palavras, volta-te as costas e vai-se embora...eis a tua terceira vitória.

BY:JCS
21/05/2012
01:39

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